sexta-feira, 14 de março de 2008

Batom.

Caçando algo dentro da bolsa ela andava sem olhar pra frente.

"Essas maxibolsas de hoje em dia são verdadeiros porões de bagunça. Um batom jogado lá dentro e o que vai acontecer é que você nunca mais vai tê-lo em seus lábios. Acredite. Opte por bolsas pequenas."

Passando em frente ao cinema, olhava com o canto dos olhos para os filmes que estavam em cartaz. Ainda não achado o que procurava em sua bolsa, decidiu parar. Sentar. Procurar uma mesa para sentar, jogar a bolsa em cima da mesa (e escutar o barulho de moedas, brincos, carteira, guarda-chuva, toda a sua tranqueira esbarrando no vidro da mesa. um grande barulho e o vidro só não quebra porque a tecnologia tratou de criar os vidros temperados.) e com calma, muita calma, retirar tudo (ou então tudo o que fosse possível de ser colocado em cima da mesa - ou melhor, do pouco espaço que sobrava, afinal aquela bolsa gigante estava ali e definitivamente ela ocupava um grande espaço na superfície da mesa.) e finalmente encontrar o que tanto procurava (e que deveria de fato ser muito pequeno, tipo um batom).


"Oi Marina! Então, me desculpa. Estou atrasada porque eu não consigo achar a chave do meu carro. Eu joguei na bolsa e não acho! Sim, eu tô no cinema, mas assim que achar a chav... Hã? Ah, tá. Sim, sei, eu pego sim, pode deixar. Tá... ok. Beijo, até."

O telefone tocou. O celular foi rapidamente encontrado por causa do seu toque extremamente alto e inapropriado para lugares lotados. É muito feio o telefone tocando alto em lugares públicos. Ela atendeu, trocou algumas palavras e quando desligou o celular olhou para o relógio e se tenho uma boa máquina leitora de pensamentos, o que ela teria dito naquela hora foi:
- Caralho, estou super atrasada. Cadê a porra do batom?

Sim, ela mentiu. Não eram as chaves que a impediam de entrar na porcaria do carro, jogar a bolsa no banco de trás (isso se ela sem querer não a jogasse em cima do vidro e então o quebrasse [os vidros do carro não são de vidro temperado, são?] e então se atrasar um pouco mais. e sim, aquela bolsa continha material o suficiente para quebrar o vidro do carro), botar a chave no contato, mudar a marcha, acelerar e pronto. ir. Apenas ir e chegar onde quer que fosse que ela precisava. É tão fácil ir e vir hoje em dia e a desgraçada perdia tempo por não encontrar o batom. Mas ela está certa. Ficou duas horas sentada na sala de cinema, comendo pipoca, engordurando os dedos e fodendo o batom. Ela tem a obrigação de se retocar. Ela precisa. pre-ci-sa. daquele batom. É urgente, gente. Socorro.

Esse tipo de gente não está muito percebendo as pessoas a sua volta. Elas andam pelos lugares mais lotados e estão sempre compenetradas no interior de suas bolsas, no tecladinho do seu celular ou em coisas mais. Preocupadas com algo, sempre, e não conseguem ver o mundo. Vêem, mas não observam. Apenas passam. A verdade é que elas só olham pra atravessar porque senão elas podem morrer. E quando dirigem elas só olham para ver se o caminho está livre porque atropelar alguém não seria nada legal, muito pior mesmo seria bater o carro, e então elas prestam atenção. O mínimo, mas prestam. E toda atenção vai embora, claro, como sempre, depois de alguns drinks, e aí vocês sabem o que acontece. Obrigado por morrerem em seus acidentes cinematográficos, queridos. Nós, jornalistas, agradecemos pois afinal, sem a sua grandiosa morte não teríamos uma matéria para redigir.
A verdade é que a tia da maxibolsa deveria carregar uma bolsa menor porque então ela juntaria menos tralha e seria fácil pra ela encontrar o seu batom e estar pronta para ir onde ela precisava ir. E sendo mais fácil se maquear, talvez ela não estaria tão atrasada e ela não precisaria mentir e o grande momento seria: ela saindo do cinema, andando tranqüila com sua bolsa pequena no ombro, os lábios bem pintados, a chave do carro na mão e o telefone em silêncio guardado num bolsinho especial, as outras pessoas do shopping estariam todas apressadas e ela olharia para elas e pensaria "quanta pressa, gente! calma, o mundo há de esperar", e um grande sorriso no seu rosto, o ar condicionado é perfeito, o chão brilha de tanta limpeza, as lojas emanam músicas-ambiente super relaxantes, e nas vitrines tudo é tão barato, sempre 50% off. E ai, que mundo lindo! Ela sentaria no seu carro e colocaria a bolsa no banco do carona, se olharia no espelho retrovisor. O batom perfeito. Dedos sem gordura, lábios lindos, cabelo penteado. No relógio a hora é apenas números que orientam a sua rotina, e não mais aqueles monstros em forma de numeral que gritam VOCÊ ESTÁ ATRASADA, ACELERE! e que mudam rapidamente como uma cronômetro de uma bomba. Ela chegaria sem estar atrasada, limpa e radiante.

"É fácil facilitar as coisas, gente. Parem com isso. Parem com tudo. Pára, por favor. Pára."

Hoje em dia ela é palestrante em um grupo de apoio a mulheres que não sabem organizar as suas vidas, mas sempre chega atrasada.

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1 Comentários:

Blogger Beatrix Miranda disse...

não sei dizer mais nada a isso, a não ser um grande sorriso. mesmo grande!
tenho orguho de você, di.

15/4/08 4:25 PM  

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